Marcos Cardoso
Jornalista
Um motorista de ônibus conta que presenciou uma cena embaraçosa ao passar por uma blitz policial num fim de linha da periferia. Era cedo e ele estava parado, esperando a subida dos passageiros, a maioria deles homens e mulheres que se dirigiam ao trabalho. O veículo da polícia se aproximou e três policiais obrigaram os que já se encontravam no coletivo a descerem e se juntarem àqueles que ainda estavam embaixo. Durante o inevitável “baculejo”, o policial mais graduado afastou um jovem, encaminhando-o ao outro lado do ônibus.
Ali, longe das vistas dos demais, o policial puxou um revólver da cintura do rapaz, um jovem há pouco saído da adolescência, e guardou-o na própria cintura, por baixo do colete. Era um 38 cano longo, niquelado, uma bela arma para quem admira esse tipo de objeto. O motorista via e ouvia a tudo, inclusive quando o policial perguntou ao suspeito: “Vai ficar calado ou prefere um flagrante?” Com poucos gestos e alguns resmungos, o jovem sugeriu que tudo bem, nada a se opor, que ele podia ficar com a arma. Foi liberado para se juntar aos outros e seguir tranquilamente sua viagem.
Quando um delinquente de 17 anos assassinou bárbara e covardemente o cobrador de ônibus, na manhã de quarta-feira, na linha Bugio-Atalaia, não foram poucos os clamores pela morte do menor assassino. “Bandido bom é bandido morto”, repetiu muita gente de bem, à la Sivuca, da Scuderie Le Cocq.
A comoção é justa, David foi mais uma vítima inocente, era um jovem trabalhador e pai de família. Mas o que mereceria um policial que rouba a arma de um bandido e o libera? O policial cometeu ali alguns crimes, foi corrupto, prevaricador, e aquele aprendiz de bandido poderia ser muito bem este que agora matou o cobrador. É somente uma analogia. Até porque a maioria dos policiais é gente trabalhadora, honesta. São heróis e também vítimas dessa violência desmedida.
O crime tem várias faces e a corrupção talvez seja a menos visível, mas é provavelmente a que mais alimenta o crescimento da criminalidade no Brasil, país onde é livre o acesso a uma arma ilegal. A pobreza, a baixa escolaridade, o preconceito são as causas de fundo. Atacar preferencialmente pretos e pobres é problema de solução a perder de vista. E a solução para o descalabro da violência também passa pela recuperação da confiança nas instituições.
O brasileiro sabe que é fácil desobedecer às leis do país, percepção confirmada por 81% dos entrevistados em uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas em 2010. Quando precisaram da polícia, 62% declararam-se insatisfeitos com o serviço prestado. Somente 33% dos entrevistados disseram confiar no Judiciário, menos do que os que confiavam na polícia (38%) e no Ministério Público (48%).
Apenas 59% dos brasileiros acreditavam que a maioria dos juízes é honesta e somente 51% acreditavam que a maioria dos policiais é honesta. Uma pesquisa realizada hoje não resultaria muito diferente. Por que será que quase metade da população não confia nesses homens?
E o problema não é de investimento. Aqui se gasta 1,26% do PIB com Segurança Pública, proporcionalmente mais do que os Estados Unidos, onde a taxa de homicídios é de 5/100 mil, e quase o dobro do que o Chile, onde a taxa de homicídios é de invejáveis 3/100 mil. No Brasil, a taxa de homicídios era há dois anos de 29/100 mil e, em Sergipe, de 49,4/100 mil. Isso quer dizer que, num universo de 100 mil pessoas, 50 são assassinadas todos os anos no menor estado da federação.
Na população jovem, até os 29 anos, a taxa de homicídio por 100 mil habitantes era de 61 no Brasil e de impressionantes 102,7 em Sergipe. Desde 2004, essas taxas não param de crescer, segundo o Atlas da Violência 2016, estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FPSP).
Em 2013, o Brasil gastou R$ 258 bilhões com os custos sociais da violência, segurança pública, prisões e unidades de medidas socioeducativas. Esse gasto equivale a formidáveis 5,4% do PIB do país. Mas R$ 114 bilhões de todos esses recursos são decorrentes de perdas humanas, ou seja, de vidas perdidas, segundo estima o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Enquanto isso, o Congresso Nacional, aprova dezenas de projetos ligados à área da segurança pública, sendo que 43% desses dedicados a temas de interesse exclusivamente corporativo das instituições policiais. Foram poucos os projetos que cuidaram de organizar o sistema de segurança e justiça criminal, e atualizar a legislação penal, a exemplo do que criou o SINESP – Sistema Nacional de Informações sobre Segurança Pública, de 2012.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública conclui que são números muito eloquentes para traçar “um cenário de crise endêmica, que exige que o país encare definitivamente o fato de que mudanças se fazem urgentes na arquitetura institucional encarregada de dar respostas públicas ao crime e à violência, bem como garantir direitos e paz”.
“O fato é que o nosso sistema de justiça e segurança é muito ineficiente em enfrentar tal realidade e funciona a partir de um paradoxo que mais induz a antagonismos do que favorece a indução de cooperação e a troca de experiências. Paradoxo esse que, por um lado, nos faz lidar cotidianamente com elevadas taxas de impunidade, erodindo a confiança nas leis e nas instituições”.
O estudo propõe que o nosso sistema de justiça e segurança necessita de reformas estruturais mais profundas. “E não se trata de defendermos apenas mudanças legislativas tópicas ou, em sentido inverso, focarmos apenas na modernização gerencial das instituições encarregadas em prover segurança pública no Brasil. Temos que modernizar a arquitetura institucional que organiza as respostas públicas frente ao crime, à violência e à garantia de direitos”, destaca o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Para isso, o combate à corrupção levado a sério é passo fundamental.