Marcos Cardoso
Jornalista
O ministro Gilmar Mendes é a cara de João Plenário, aquele personagem humorístico, paródia do político brasileiro. Quando emite suas opiniões polêmicas é impossível não lembrar logo do deputado falastrão, uma criação do ator Saulo Laranjeira. No arroubo opinativo mais recente o ministro disse que a Lei da Ficha Limpa “parece ter sido feita por bêbados”. No tempo que juiz só falava nos autos, o velho empresário Gilmar jamais chegaria a magistrado.
O ministro atirou no que viu e acertou o que não viu. Um dos idealizadores da lei, o advogado e ex-juiz Márlon Reis, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, classificou como “desrespeitosa” a fala de Gilmar, que atingiu por tabela a OAB, a CNBB e outras organizações que elaboraram o projeto. Ele também desrespeitou o Congresso Nacional, onde o projeto foi aprovado, e o Supremo Tribunal Federal que ele integra, onde essa moderna norma jurídica há quatro anos foi declarada constitucional.
Pois agora a Lei da Ficha Limpa está sob forte ataque do próprio STF, que acaba de tomar uma decisão que pode beneficiar políticos que tiveram suas contas rejeitadas por Tribunais de Contas. Segundo a decisão, o enquadramento de candidatos com base na Lei da Ficha Limpa, que prevê inelegibilidade de oito anos, exige que eles tenham sido condenados também pelas Câmaras e Assembleias.
Para os ministros, cabe aos vereadores dar a palavra final sobre o balanço contábil de prefeitos, por exemplo. Na prática, como na maioria dos casos as Câmaras são formadas por parlamentares aliados à gestão municipal e as Assembleias por deputados aliados do governo, a decisão vai limpar a barra da maioria dos candidatos ameaçados pela agora tripudiada Lei da Ficha Limpa.
Seis mil candidaturas a prefeito serão beneficiadas pelo novo entendimento, segundo a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil – Atricon. Mantido o que prediz a Lei da Ficha Limpa, quase 5 mil candidatos correm o risco de ser barrados. Em Sergipe, são 215 gestores que tiveram suas contas rejeitadas ou seus atos administrativos foram julgados ilegais ou irregulares e sofreram imposição de glosa pelo Tribunal de Contas.
A Justiça Eleitoral identificou os candidatos sujos cruzando seus CPFs com os registros das bases de dados dos Tribunais de Justiça, dos Tribunais de Contas e outros órgãos de controle. Mas cabe aos promotores eleitorais, diante desses dados, analisar se há elementos ou não para barrar a candidatura.
Por que mexer no que está começando a dar certo?
Naquele dia 11, ao ser questionado sobre a decisão do Supremo, o presidente do Tribunal de Contas de Sergipe, Clóvis Barbosa, foi certeiro nas palavras: “É um tapa na cara na Lei da Ficha Limpa e no combate à corrupção no país”. Porque a decisão é um retrocesso, troca um julgamento de caráter técnico pelo julgamento político, podendo resultar em tantas ações na Justiça Eleitoral e modificar o panorama das próximas eleições.
O presidente da Atricon e conselheiro do TCE de Pernambuco, Valdecir Pascoal, lançou uma nota afirmando que a decisão do Supremo sela a vitória da injustiça e da impunidade.
“Além de esvaziar, em grande medida, as competências constitucionais dos Tribunais de Contas, no que se refere a aplicação de sanções e determinação de ressarcimento aos Prefeitos que causaram prejuízos ao erário, a decisão do STF fere de morte a Lei da Ficha Limpa, considerando que a rejeição de contas pelos Tribunais, e não pelas Câmaras, constitui o motivo mais relevante para a declaração de inelegibilidades pela Justiça Eleitoral (84%)”.
Outras entidades também se manifestaram, inclusive a OAB. Na quinta-feira, coincidentemente um dia depois que Gilmar Mendes fez seu importante pronunciamento sobre bêbados, apoiados por um grande sentimento de insatisfação, todos os presidentes de Tribunais de Contas do país foram a Brasília manifestar seu descontentamento. Reuniram-se na quarta-feira para afinar o discurso e mantiveram audiência com Michel Temer na quinta-feira.
Se a pressão vai surtir efeito ainda não se sabe.