Patrulhamento ideológico


Marcos Cardoso
Jornalista

A turma que ganhou passagem para Cuba está revoltada. Não gostou nada da coluna do domingo passado, em que se pedia a morte do ditador Fidel Castro para o bem da ilha. Morte política, explique-se direitinho. Os esquerdistas adoram brincar de iconoclastas e niilistas, mas não toleram que se mexa com seus ídolos e suas crenças. Fingem esquecer que, mais do que uma divindade que se adora mais do que a própria divindade, Fidel virou uma referência tardia. Uma imagem anacrônica de um sonho que nunca foi possível. Não da forma como se tentou na Rússia, na China ou em Cuba, muito menos na Albânia.

Mas as atrocidades que Fidel promove há 48 anos não importam para a patrulha ideológica — que vai muito bem, obrigado. Muda de lado, ora está à esquerda, ora à direita, ora entre proletários, ora entre intelectuais ou artistas, mas sempre à espreita da bruxa da vez para cassar. O patrulhamento ideológico é um sentimento semelhante à xenofobia, de hostilidade e aversão dirigidas a pessoas e coisas que possam vir a ser consideradas opositoras de determinadas idéias preconcebidas. É o policiamento do pensamento e das idéias. E contra a liberdade de expressão.

O termo tornou-se freqüente na imprensa brasileira a partir de 1978, quando apareceu numa entrevista do cineasta Cacá Diegues ao jornal “O Estado de S. Paulo”.

Mais recentemente, num depoimento ao livro Patrulhas Ideológicas Marca Reg., ele abordou esse caráter multiforme do patrulhamento ideológico, que já serviu a comunistas e macartistas, nazistas e integralistas: “Acho que não existem os patrulheiros e os patrulhados. O patrulheiro de hoje é o patrulhado de amanhã. Porque isso não existe como uma categoria política, social, cultural. O que existe é um sistema de pressão, abstrato, um sistema de cobrança. É uma tentativa de codificar toda manifestação cultural brasileira. Tudo que escapa a essa codificação será necessariamente patrulhado”.

SIMONAL MORREU NO OSTRACISMO

Outros artistas foram vítimas do patrulhamento ideológico no Brasil. O caso mais dramático é o de Wilson Simonal. Ele foi um importante artista da MPB na década de 1960, criador de um estilo musical que misturava swing e soul. O calvário começou em 1972, quando um segurança dele raptou e agrediu o contador responsável pelo desvio de quase toda a fortuna do artista. O incidente, tornado público em plena ditadura militar, contribuiu para que Simonal ficasse com fama de seqüestrador e alcagüete.

As denúncias contra Wilson Simonal, quando ele vivia o auge do sucesso, levaram o cantor a ser banido do cenário musical e da mídia. O cantor ficou com fama de “dedo duro”. Seus discos sumiram das lojas, suas músicas não tocavam mais nas rádios, e seus shows e contratos foram cancelados. Outros artistas se recusavam a trabalhar ao lado de Simonal. O filho, o também talentoso Simoninha, aponta o patrulhamento ideológico de segmentos da classe artística nos anos 1970 como fator preponderante para a desmoralização do pai.

Ignorado pela imprensa e pela classe artística, o cantor amargou o ostracismo até o final da vida. Não conseguiu provar em vida sua inocência. A redenção só veio seis anos após a morte do cantor, em 2000. No dia 26 de fevereiro de 2006, uma investigação da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB revelou que Simonal não era delator, como foi injustamente acusado. Não era aliado da ditadura coisa nenhuma. Era só um artista, um showman, que queria desfrutar do seu momento de fama e glória.

AO PATRULHADOR BASTA A SUSPEITA

Regina Duarte — aquela que dizia debilmente ter medo de Lula — e Marília Pêra também sofreram com o patrulhamento ideológico. Marília foi vítima da direita e da esquerda. Em 1968, integrantes do Comando de Caça aos Comunistas invadiram o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, e espancaram o elenco da peça Roda Viva, ferindo todos os integrantes. A atriz estava no elenco. Já em 1989, os artistas não entenderam o fato de ela apoiar a candidatura de Fernando Collor de Mello à presidência da República. Teve que amargar um tempo na geladeira, até “se limpar” com a classe.

Parêntese: o tempo passa, o tempo voa e eis que Lula e Collor hoje estão do mesmíssimo lado, como velhos aliados políticos.

Muitos que combateram a ditadura militar no Brasil, usando a cabeça ou as armas, e sobreviveram à fúria do Comando de Caça aos Comunistas ou dos cães da polícia política, não conseguiram fugir à sanha do patrulhamento ideológico perpetrado pelos próprios colegas ou camaradas. E essa perseguição é duradoura, senão eterna, pois o linchamento moral não acaba nunca.

Quantos sergipanos que sofreram torturas nos cárceres militares hoje não são apontados nas ruas por ex-companheiros como dedos-duros do regime? Alguns talvez não tivessem resistido ao suplício e acabaram delatando mesmo. Outros, nem isso. Mas paira uma suspeita. E para o preconceituoso adepto do patrulhamento ideológico, isso basta.

CORREIO

“Ontem assisti ao filme ‘Antes que anoiteça’, inspirado na vida do escritor Reinaldo Arenas, vítima das atrocidades do senhor Fidel. Quanta injúria, desumanidade e horrores! Mas nada disso se compara ao povo, grande parte, que ainda aplaude e pede pela saúde do ditador! O mais impressionante é que tudo foi violado no país: o ato de ir e vir, de escrever, acesso à cultura e a religião livres, à escolha sexual etc. O seu artigo ilustra um pouco de tudo isso. O escritor Reinaldo Arenas se matou em Nova York, em repúdio ao regime castrista. E tantas foram e são vítimas desta violação, enquanto o mundo assiste a tudo calado, com visitas até de chefes de Estado a este anti-Cristo, inclusive o nosso Lula, que tem um pé no comunismo e outro no filé mignon.” — Email de Araripe Coutinho, poeta.

(Publicado em 26/03/2007)