O último romântico do jornalismo


Marcos Cardoso
Jornalista

“À semelhança da esmagadora maioria dos cariocas, sinto-me perfeitamente feliz nesta cidade. Aqui cheguei numa tórrida manhã de fevereiro (mais precisamente, na manhã do dia 13 de fevereiro de 1937), vindo pelo Itagiba, simpático ferro-velho que os alemães iriam afundar, cinco anos depois, exatamente na boca do rio Real, lugar onde acaba Sergipe e começa o resto do mundo. Quando desembarquei no Armazém 13 (numerozinho joia!) tinha de mim 18 anos incompletos, 200 mil réis e uma carta de apresentação para um figurão federal, carta que, aliás, nunca foi entregue, pois o destinatário mandava dizer sempre que não estava quando eu ia procurá-lo (já morreu o infeliz, e que a terra lhe seja leve). Vim — e aqui estou. O meu querido Paulo Mendes Campos (28.2.1922 – 1.7.1991) escreveu certa vez, e acertou em cheio, que ‘o carioca tem o gosto e o dom de igualar os homens, de refugar as sofisticações, de considerar apenas em cada pessoa, independente de qualquer valor, a sua capacidade de convívio’. Sem querer ser imodesto, acho que sou também mais ou menos assim. Como igualmente me repugna, como ao Rio, na citação de PMC, ‘qualquer pose ou afetação’. De forma que sendo o Rio como é e sendo eu como sou, nosso convívio tem sido bastante fácil — e só não é mais por culpa exclusiva minha, que às vezes engrosso sem motivo. Mas isso só se dá quando, movido por incontroláveis impulsos telúricos, deixo por alguns instantes de ser carioca e volto a ser nordestino. O que, graças a Deus, vem acontecendo cada vez mais raramente”.

A autodescrição encerra um texto de Joel Silveira chamado Rio, do livro Memórias de Alegria, e é bem coerente com a personalidade irrequieta do sergipano que morreu naquela cidade que o adotou, ou que ele adotou como sua, já há quase dez anos, no dia 15 de agosto de 2007. Seis meses antes de morrer, já alquebrado pelo câncer de próstata que o consumiu por alguns anos, abatido pela inevitável velhice, Joel Silveira bafejou o cansaço e, sem perder o vezo, proferiu uma sentença tão cáustica quanto muitas das suas reportagens: “O Brasil, hoje, não é um bom assunto. Estamos vivendo uma vida política medíocre”.

Joel Silveira, que morreu aos 88 anos, estava se referindo à corrupção, aos escândalos que andaram sacolejando os podres poderes brasileiros, à violência que viceja na impunidade e a outros males que tais. Ele falava como se ainda tivesse forças para escrever, se quisesse, mas não queria mais. Cansou. Para ele não valia mais a pena.
O lagartense Joel foi talvez o último romântico do jornalismo. Foi de um tempo épico quando o mundo girava mais lentamente, os jornais valorizavam a grande reportagem e a política estava muito acima de ser um meio fácil de ficar rico. As suas reportagens, publicadas em alguns dos mais de 40 livros que lançou em vida, têm um estilo literário que caiu em desuso nesses dias de lides plastificados, prontos a responder perguntinhas básicas.

“Joel usa intensamente recursos de ficção para descrever com maior riqueza os fatos que narra; lança mão da metalinguagem, de flashbacks e, muito fortemente, de referências ao que andava por seu mundo interior no momento em que ocorrem os fatos narrados”, diz o jornalista Leão Serva, no posfácio do livro A feijoada que derrubou o governo, de 2004, o penúltimo do prolífico Joel (o último foi O inverno da guerra, de 2005).

A reportagem que dá título ao livro talvez seja o exemplo mais bem-acabado de um cada vez mais raro subjetivismo aplicado ao jornalismo. É a descrição do dia do golpe de 1964. Perambulando pelo Rio de Janeiro na madrugada de 1º de abril, ele recorda incrédulo de um poderoso banquete ocorrido dias antes do golpe, na casa de um jovem ministro, onde, testemunha ocular da história, naturalmente estava presente.
Na ocasião, poderosos comensais se deliciaram da mais gostosa feijoada de todos os tempos, regada a perfeitas batidas de limão e maracujá, e revelavam sua confiança absoluta no “dispositivo”, o esquema de segurança de João Goulart. Os ecos da festa torturavam Joel Silveira, que andava perdido pelas ruas do Rio, já totalmente controladas pelo Exército golpista. Ele conclui que toda a energia do dispositivo tinha se esgotado na digestão daquela feijoada: “O dispositivo era somente aquilo: o tenro charque do Rio Grande, a língua especial trazida de Teresópolis, o orgulhoso e impávido paio português, a dourada salmoura, a primorosa batida de maracujá e também a não menos soberba batida de limão, a imaculada farinha do Nordeste?”.

Ele retorna ao passado recente para relembrar os comícios, os manifestos, as greves, as briguinhas de bastidores, a arrogância dos políticos que cercavam o presidente. “Entre o Comício da Central e a sua queda, no alvorecer do dia 1º de abril, João Goulart não iria mais sair; e mergulhado assim no patético sonambulismo que dele se havia apoderado a partir das 21h45 do dia 13 de março, quando, obnubilado e ofegante, conseguiu vencer a multidão e chegar ao seu carro, ele iria ser apenas o simbólico epicentro do terremoto que se armava em seu redor e que não tardaria a explodir, pondo abaixo em segundos tudo aquilo, esperança dos comandados e promessa dos comandantes, que o feijoadesco ‘dispositivo’ garantia defender de todas as maneiras”.

No dia posterior à morte do velho jornalista, Hélio Fernandes (ele está vivo e tem 96 anos!) escreveu na Tribuna da Imprensa: “Passo em revista os mais de 60 anos de amizade, de convivência, de admiração por Joel Silveira, o homem que durante quase 70 anos foi considerado o maior repórter brasileiro. Se no Brasil houvesse um Prêmio Pulitzer (destinado apenas a repórteres-escritores), quase todo ano ou a cada livro, teria que ser entregue ao Joel”.

Mas ele próprio, casmurro, era avesso a homenagens. “Esse negócio de bom ou grande repórter, o maior repórter do Brasil, eu acho uma idiotice completa. Sempre fui cáustico na minha maneira de ser, mas nunca fui agressivo, nunca ofendi ninguém”, dizia Joel Silveira, que uma vez prescreveu a seguinte receita para ser um bom jornalista: “Paciência, persistência e sorte”. Como se fosse fácil.

O “víbora”, como o alcunhou Assis Chateaubriand (1892 – 1968), era, acima de tudo, íntimo das palavras. “Ele tinha o segredo do adjetivo. Com um adjetivo ele destruía uma reputação”, brincava Ledo Ivo ((8.2.1924 – 23.12.2012). “Era uma língua que unia ironia e até sarcasmo, com uma grande dose de poesia e de ternura. Creio que ele ficará na literatura brasileira e será redescoberto. Seu estilo admirável será admirado e será amado”, previa o alagoano, acadêmico e amigo. Que assim seja, amém!

Cláudio Abramo

Coincidência de agosto: já há quase 30 anos morria outro importante jornalista, este de São Paulo, o Cláudio Abramo (6.4.1923 – 14.8.1987). Formador de uma geração de profissionais de jornal, ele dizia que a ética do jornalista é a mesma do marceneiro. Ou seja, ética, só há uma: a do cidadão. Roberto Müller Filho, um discípulo dele, escreveu que, quando cuidava do Projeto Folha (que acabou transformando o diário paulista no maior jornal do País), Abramo apresentou ao Otávio Frias de Oliveira três nomes de jornalistas conhecidos para agregar influência ao jornal. Müller argumentou depois que os três nomes que ele sugerira eram competentes, mas nem sempre falavam bem dele. Ao que Abramo respondeu com uma lição: “Eu sei, mas são grandes jornalistas e têm direito ao trabalho”.

Homens éticos do naipe de um Cláudio Abramo e de um Joel Silveira fazem falta à imprensa brasileira e ao Brasil.