O herói acidental


Marcos Cardoso
Jornalista

Um homem arrasado por problemas familiares e profissionais é a primeira pessoa a chegar aos destroços de um avião após um acidente aéreo. Ele ajuda a salvar dezenas de vidas, mas foge antes da chegada da imprensa. Uma jornalista premiada que estava entre os sobreviventes resolve iniciar uma campanha para descobrir quem é o herói misterioso.

Esse é o resumo tosco de “Herói acidental”, comédia dramática filmada por Stephen Frears em 1992, estrelada por Dustin Hoffman e Geena Davis. O herói do filme é o arquétipo do homem comum, às voltas com seus dramas pessoais, que de repente é alçado à condição de celebridade por ter praticado uma boa ação — na verdade um ato instintivo do homem diante da ameaça à vida do próximo.

Seria Lula um herói acidental? Esta é a questão aventada pelo jornal de centro-esquerda britânico The Guardian. Na sexta-feira, o respeitado diário publicou um alentado suplemento especial de 20 páginas sobre o Brasil, que, na geopolítica mundial, “se tornou um ator econômico de peso”. O jornal questiona até que ponto o crescimento da economia brasileira se deve ao governo Lula.
Em um perfil de página inteira de Luiz Inácio Lula da Silva, The Guardian lembra que o presidente começou a vida como imigrante pobre, trabalhando de engraxate e lustrando sapatos em São Paulo aos 7 anos de idade. “Meio século depois o ex-camponês imigrante ainda pode ver seu reflexo enquanto trabalha, mas a imagem é mais afiada: vem da piscina do Palácio do Planalto, a sede da Presidência em Brasília. Lula, como presidente Lula, encontrou seu futuro melhor”, diz, na tradução da BBC Brasil.

A história do imigrante pobre que virou presidente é sedutora, afirma o jornal, “por conta do progresso econômico e social (do Brasil) desde que ele assumiu o poder”. Afirma o diário britânico: “A inflação e a pobreza extrema diminuíram, o investimento e as exportações aumentaram e fala-se em um novo Brasil. Não é surpresa que o presidente seja popular em casa e festejado fora”.
A pergunta é se ele é o arquiteto ou meramente a figura de frente dessas mudanças.

O jornal propõe então: Lula puxou o país para cima junto com ele, ou tudo foi uma coincidência e ele, em outras palavras, teria sido apenas sortudo? “As condições globais favoreceram o Brasil, entre elas o boom de exportação impulsionado pelo apetite da Índia e da China por soja, ferro e outras commodities. Décadas de investimento em biocombustíveis e a Petrobras, a companhia estatal de energia, estão agora rendendo frutos”.

No resultado, segundo o jornal, os números vão “de bons a espetaculares: 1,4 milhão de empregos criados todos os anos; mais de US$ 100 bilhões em reservas (que excedem a dívida externa e tornam o Brasil credor internacional); 4,7% de inflação, o que é ‘manso’ pelos padrões brasileiros; mais de 4% de crescimento econômico, e uma ligeira aproximação na diferença com a China. Ah, e no ano passado o mercado de ações cresceu em 60%”.

O Guardian destaca que agora, além do samba e jogadores de futebol, o Brasil também exporta carros e aviões, notadamente aviões executivos e de passageiros da Embraer. Mas afirma que, apesar do crescimento, o país ainda enfrenta vastos problemas sociais e ambientais.

A ELEIÇÃO DE LULA EM 2002, lembra o Guardian, “amedrontou os investidores de Wall Street, que o viam como um socialista radical”, que adotaria políticas populistas e nacionalizaria a indústria, “arruinando a frágil recuperação” brasileira. “Estavam errados. Em contraste com a retórica revolucionária do presidente venezuelano Hugo Chávez, ele adotou um tom reformista cauteloso”, diz o jornal.

“Longe de ser um herói socialista, Lula continuou as políticas ortodoxas do governo de (Fernando Henrique) Cardoso”, desapontando os radicais do PT e agradando os investidores. Cinco anos depois, “a prudência fiscal e as políticas que agradam o mercado garantiram estabilidade econômica e crescimento sólido, mesmo que não espetacular. Os ricos estão mais ricos, mas, mais importante, os pobres estão menos pobres”.

Mas se Lula se mostrou mais inteligente politicamente do que se imaginava, o jornal afirma que, no setor econômico, não se sabe se ele teve mais sorte do que inteligência. Críticos alegam que Lula está fugindo das “dolorosas, mas necessárias” reformas tributária, previdenciária e trabalhista.

“A imagem internacional de Lula continua dourada. A história de vida atraente, os abraços de urso, o carisma: ele é visto como um progressista social fofo, mas pragmático, no topo de um país finalmente realizando seu potencial”. O presidente é adorado por muitos brasileiros, mas até que ponto Lula é responsável pelo sucesso do Brasil, permanece uma “abstração”, afirma o Guardian. “Deixe que os historiadores discutam sobre a sorte. O que interessa é que o país está brilhando”, conclui, lembrando que o Brasil era conhecido como o país do futuro. “O futuro ainda não chegou, mas está mais perto agora do que já esteve em várias gerações”.

E Lula não chegou aos destroços de um avião para ajudar a salvar as vítimas de um acidente aéreo. Mas certamente — e com boa dose de vacilos e tropeços — tem conseguido conduzir essa nave instável chamada Brasil com muito mais habilidade do que poderiam supor doutores e estrategistas. Sem nunca ter tirado brevê de piloto. Para desespero dos que sentiam medo e hoje o odeiam. É o happy end da comédia dramática brasileira.

(Texto de 18 de março de 2008)