Falemos da Síria


Marcos Cardoso
Jornalista

Pensem nas crianças mudas telepáticas. Crianças assustadas entre destroços. Feridas, perdidas, chorando. Corpos cobertos por uma pasta composta de poeira e sangue. Elas são as maiores vítimas de uma guerra suja e fratricida. Bem que Vinicius de Moraes poderia ter se inspirado nas crianças da Síria para escrever “A Rosa de Hiroxima”. Pensem nas feridas como rosas cálidas.

Nos campos de refugiados próximos às fronteiras da Turquia, do Líbano ou da Jordânia crianças muito pequenas e de olhos assustados erguem as mãos para o alto quando um fotógrafo lhes aponta a lente da câmara. Pensam que é arma. São pequenos humanos carregando uma cicatriz que jamais se cura.

Em Alepo, Duma, Palmira e até na capital Damasco não há vida normal possível. Segundo o Unicef, cerca de 3,7 milhões de crianças, uma em cada três no país, não conhecem outra realidade além do conflito que já dura mais de cinco anos.

Em agosto, correu o mundo a imagem de um menino sírio de cinco anos, Omran Daqneesh, logo após ser resgatado com os pais e os três irmãos dos escombros de um prédio bombardeado. Ele aparece sentadinho numa ambulância, sujo, o rosto sangrando, o olhar vazio, para o nada, em choque.

Mas o planeta deu as costas para a Síria. As imagens de cidades-túmulos já não impressionam. As pessoas se acostumaram com a guerra naquele que foi um próspero país do Oriente Médio. O berço dos assírios e de uma leva de imigrantes que construiu fortunas, inclusive no Brasil, virou saco de pancada do mundo.

Na quinta-feira, 25 civis morreram em bombardeios aéreos e de artilharia do regime sírio contra os bairros rebeldes de Alepo. Na quarta-feira, ao menos 46 morreram e mais de cem ficaram feridos em outro local da mesma cidade. Os ataques aéreos atingiram dois hospitais e um banco de sangue.

Alepo é uma cidade chave tanto para o regime de Bashar al-Assad como para seus opositores, que se enfrentam em uma guerra que já deixou 400 mil mortos. Você há de pensar: ora, no Brasil se mata 50 mil por ano. Mas este tropical país da corrupção e da impunidade não está destruído, arrasado. Pelo menos ainda não.

Um terço das vítimas da guerra da Síria são civis, incluindo as crianças. O número de refugiados em decorrência do conflito supera os 4 milhões, na pior crise do tipo enfrentada pela ONU nos últimos 25 anos.

Milhares de crianças precisam trabalhar para sobreviver e muitas delas estão em fábricas de armas do Exército Livre da Síria, em Alepo, reduto da revolta. Um menino trabalha com o pai na fábrica por dez horas todos os dias, exceto às sextas-feiras, segundo conta a correspondente especialista em coberturas internacionais da BBC, Lyse Doucet.

“Elas não são apenas alvo da violência, são a própria linha de frente da guerra”, ela testemunha. “Muitas vezes veem os seus pais morrendo na sua frente, suas casas destruídas. Elas próprias são muitas vezes tiradas dos escombros.”

A Síria é uma colcha de retalhos formada por vários povos, quase todos árabes muçulmanos: há a maioria sunita, os separatistas curdos, os ismaelitas, drusos, e uma minoria cristã. E há os alauítas, braço do islamismo a que pertence o ditador Assad.

O estopim do caos foi aceso em 2000, com queixas populares contra o desemprego, a corrupção, falta de liberdade política e repressão. A reação violenta de Assad fez com que simpatizantes do grupo antigoverno pegassem em armas, primeiro para se defender e depois para expulsar as forças de segurança de suas regiões.

A violência cresceu, grupos rebeldes se reuniram em brigadas para combater as forças oficiais e retomar o controle das cidades e vilarejos. E quando em 2012 os enfrentamentos chegaram a Damasco e à segunda cidade do país, Alepo, o conflito transformou-se em mais que uma batalha entre os apoiadores de Assad e os que se opunham a ele: adquiriu contornos de guerra sectária entre a maioria sunita e xiitas alauítas.

A desmedida truculência do governo — acusado até de usar gás sarin num ataque químico que deixou quase 1.500 mortos, incluindo mais de 400 crianças — e a entrada no conflito de radicais e jihadistas partidários da “guerra santa” islâmica — entre eles o autointitulado Estado Islâmico e a Frente Nusra, afiliada à Al-Qaeda — arrastaram as potências regionais e internacionais para o conflito, conferindo-lhe outra dimensão.

Ali também combatem o Exército curdo, um dos grupos que os Estados Unidos estão apoiando no norte da Síria e que são inimigos declarados da Turquia.

Desde 2014, os EUA, o Reino Unido e a França realizam bombardeios aéreos no país, mas procuram evitar atacar as forças do governo sírio, apesar de culparem Assad pelas atrocidades que promove. De outro lado, a Rússia entrou com uma campanha aérea para “estabilizar” o governo após uma série de derrotas para os rebeldes. A intervenção russa possibilitou vitórias significativas das forças aéreas sírias, dando fôlego ao ditador.

A Rússia apoia a permanência de Assad no poder para defender os interesses de Moscou no país. Mas é o Irã, de maioria xiita, o aliado mais próximo de Bashar al-Assad. A Síria é a principal rota dos armamentos que Teerã envia para o movimento Hezbollah no Líbano. E esta milícia, historicamente inimiga de Israel, também envia combatentes para apoiar as forças sírias.