Marcos Cardoso
Jornalista
Há uma frase atribuída a Caetano Veloso que diz ser incrível a força que as coisas parecem ter quando elas precisam acontecer. O impeachment de Dilma Rousseff é uma sucessão de ações ardilosas, fracassos e erros que alimentaram e fortaleceram essa coisa que não necessariamente precisava acontecer.
Se é o caso de buscar explicações, comecemos pela fadiga de material de um governo que já dura mais de 13 anos, que não soube se renovar diante do desgaste “natural” e a tempo de encontrar a saída para os efeitos da crise econômica mundial manifestada em 2008 e que se agravou justamente às vésperas da reeleição de Dilma, atingindo em cheio as até então festejadas economias emergentes, com destaque para os Brics.
O brasileiro antes tão bonzinho já havia dado sinais de descontentamento ainda em 2013. Mas fantásticos índices de aprovação popular, a ausência de um adversário com maior envergadura política e moral, e uma campanha eleitoral bem elaborada e convincente garantiram a reeleição, mesmo que por margem mínima de votos.
Logo após a reeleição e já atingida em cheio no órgão que mais dói, o bolso, impaciente com a volta da inflação e do desemprego e influenciada por uma oposição inconformada com o resultado da sua recondução ao Planalto, a maioria foi pouco a pouco se deixando intoxicar pela pregação sobre o aprofundamento da crise, tão desejada pelo Congresso e tão massificada por amplos setores da mídia.
O próximo passo era persuadir o popular a pensar que a saída para a crise seria a porta dos fundos do palácio.
Primeiro, os inconformados, Aécio Neves à frente, tentaram anular o resultado de uma eleição justa e legítima. E tentaram em vão envolver a presidenta nos crimes revelados aos borbotões pela Operação Lava Jato. Não deu certo porque a cada revelação mais eles se complicavam.
Segundo, e então conseguiram algum êxito, fizeram pregar na presidenta a pecha de mentirosa, porque promessas de campanha não estavam sendo cumpridas, como o corte brusco dos programas que permitiram a milhões de pessoas o acesso à universidade e aos cursos técnicos, antes apontados como fator de sucesso do governo.
Até que, associados ao Tribunal de Contas da União, centraram fogo numa manobra contábil corriqueira que agora passou a se chamar pedalada fiscal e que foi alçada à categoria de crime de responsabilidade. Na falta de acusação melhor, esta serve!
Mas a preparação efetiva do golpe foi secundada pela ajuda que veio de dentro do próprio Planalto, mais especificamente, do terceiro andar do palácio, do gabinete da própria. Essa ajuda foi a inabilidade de Dilma para saber lidar com o bando de aliados que a cercava.
Um zoológico de múltiplas variedades e aparências, em meio a oposicionistas sinceros, com uma fome em comum, a fome do poder fácil. O país pôde conhecê-los vociferando no domingo discursos toscos e ultrapassados, mas de acordo com o figurino de fidelidade às poderosas bancadas do boi, da Bíblia e da bala, aos interesses da Fiesp e outros talvez inconfessáveis.
Pelos maçons do Brasil, contra o ensinamento da mudança de sexo nas escolas, pela paz em Jerusalém, por todos os corretores de seguro, pela minha mãe Lucimar, pelos militares de 64, pela minha tia Eurides, que cuidou de mim quando eu era pequeno, por Carlos Brilhante Ustra, o terror de Dilma…
Na sua algaravia, deixemos claro, um bando afinado e orquestrado sob a batuta inteligente de um político que se usasse sua competência para fazer o bem certamente teria muito a contribuir com o país. Mas tal qual um Lúcifer, Eduardo Cunha é um anjo caído, que só alimenta inveja, rancor e desejo de acumular poder e riqueza.
Nesse ponto, o plano já havia fugido ao controle dos tucanos e caído no colo do PMDB, um partido conhecedor dos atalhos para se chegar ao poder.
Dilma não soube sequer manter aparências de boa convivência com o elegante vizinho do lado, esse um animal da ordem dos quirópteros, que se movimenta na penumbra e se alimenta da energia vital daquele que o nutre.
Quando saiu da sombra, Michel Temer revelou sua perigosa astúcia.
É que Dilma não é Lula. Ela é uma lutadora, uma resistente, uma técnica que não sabe lidar com a malandragem dos corredores da política.
Talvez o plano tão bem engendrado, mas não exatamente assim preparado, não tivesse frutificado se não fosse a leniência do Judiciário. Sob o argumento suspeitoso de não querer interferir no Poder alheio, o Supremo Tribunal Federal deixou os bichos correrem soltos.
Tivesse o STF dado um basta às diatribes do presidente da Câmara, certamente o debate em torno do impeachment, sem o seu tocador principal, não teria progredido.
Uma questão envolvendo foro por prerrogativa de função fica sem resposta: se por muito menos um senador, Delcídio do Amaral, foi preso, por que um deputado federal jamais foi admoestado, mesmo com tantas provas criminosas contra ele?
O STF deve essa explicação à história.