As veias abertas da América Latina continuam sangrando


Marcos Cardoso
Jornalista

Um pesquisador que indagasse a um brasileiro sobre qual lugar jamais visitaria, ele certamente citaria um país do mundo árabe, aquela região conflituosa localizada entre o centro-oeste asiático e o centro-norte africano. Síria, Iraque, Afeganistão, Somália, Sudão, Nigéria? Jamais, por causa da violência.

De fato, esses países estão entre os mais violentos, em termos proporcionais. Em termos absolutos, o país mais violento do mundo é o Brasil, com 56 mil assassinatos por ano, 154 vítimas de crimes por dia. Mata-se mais por aqui do que nas maiores zonas de guerra do mundo.

E a violência endêmica no Brasil não está restrita às suas fronteiras. Muito pelo contrário. A América Latina é hoje o “continente” onde a vida vale menos e a taxa de homicídio per capita é a mais alta: com 9% da população, tem 30% dos homicídios do mundo.

Das 50 cidades mais violentas do planeta, 42 estão em países da América Latina e Caribe, incluindo as 21 cidades do Brasil que aparecem no levantamento do Conselho de Segurança Pública dos Cidadãos do México. E para reforçar a certeza de que o continente americano é o lugar do mundo mais perigoso para se viver, quatro estão nos Estados Unidos. As outras quatro cidades mais violentas fora da região são da África do Sul.

A decadente Venezuela possui oito cidades nesse macabro ranking, três entre as dez primeiras, sendo que a capital Caracas é hoje a cidade mais violenta do mundo, com inacreditáveis 120 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes. O conflituoso México tem cinco cidades na lista e a bela Acapulco é a mais violenta delas, aparecendo em quarto lugar no ranking, com 105 assassinatos.

Em momentos distintos, as cidades mais violentas do Brasil já foram Rio e Maceió. Agora são Fortaleza, Natal e Salvador, com quase 61 assassinatos/100 mil habitantes. Estão nas posições 12 a 14 do ranking, mesma lista onde Aracaju aparece em 38° lugar, com média de 38 assassinatos.

A Organização Mundial da Saúde informa que a violência na América Latina é uma epidemia e como tal precisa ser tratada. De acordo com a definição de epidemia que tem a OMS, uma taxa acima dos 10% no caso da violência, é epidêmica. E a maioria dos países na América Latina tem taxas muito superiores a isso. Então, sim, é uma epidemia — diz o médico epidemiologista colombiano Andrés Villaveces, consultor do Banco Mundial para área de desenvolvimento social na prevenção da violência e seguridade, em entrevista ao espanhol El País.

Não há um remédio capaz de curar o mal, mas ações, em nível individual, familiar, escolar, comunitário, em nível municipal, estadual e nacional, que podem ser implementados e que são complementares.

A lei que restringe o porte de armas ou o acesso às armas de fogo é um exemplo eficiente. O mesmo acontece com o álcool. “A restrição ao álcool é ainda mais eficiente na redução de homicídios: até 25% menos assassinatos com uma redução de algumas horas de acesso ao álcool em algumas cidades”, exemplifica o especialista.

Combater a violência doméstica e o abuso infantil, também são ações eficazes, assim como incentivar que as escolas sejam ambientes mais produtivos e criativos.

Quanto à repressão policial, Andrés Villaveces observa que as atividades de controle são necessárias e importantes, mas não são as únicas e nem as melhores. “A melhor estratégia realmente, do ponto de vista econômico e do benefício social, é a prevenção. Todos estes eventos violentos produzem uma série de sequelas, criando um efeito cascata que prejudica o indivíduo e suas famílias e terminam sendo afetadas do ponto de vista social e econômico”.

Quanto aos jovens, especialmente os rapazes, que são os que mais cometem atos violentos e são as principais vítimas dos atos violentos, esses merecem mais atenção do Estado e da sociedade. Trabalhando com jovens são maiores as oportunidades de corrigir o problema e de preveni-lo a longo prazo do que quando se trabalha com pessoas em idade adulta que já aprenderam condutas violentas.

“Quanto mais cedo for a intervenção na população juvenil, melhores efeitos a longo prazo teremos. Podíamos somar a isso um terceiro elemento: é que os jovens são as pessoas que possuem melhor capacidade de produzir economicamente para suas famílias. Se são as pessoas mais afetadas pela violência, porque sofrem lesões para toda a vida ou porque falecem, para suas famílias isso vai representar um problema econômico muito severo que leva a uma espiral de pobreza. Por isso, nós queremos trabalhar para prevenir que isso ocorra”, diz o médico, acrescentando que isso, “naturalmente”, precisa ser complementado com maior acesso ao emprego e à educação.

Mas como aplicar esse coquetel de remédios num lugar como o Brasil, identificado pela Anistia Internacional como um país, além de extremamente violento, com “graves violações dos direitos humanos”?

A entidade destaca dez violações dos direitos humanos no país. São elas: número de mortes, repressão a protestos, violência policial, condições carcerárias, tortura e maus-tratos, impunidade dos crimes do governo militar, direitos dos povos indígenas, direitos LGBT, criminalização do aborto e comércio de armas.

Ressalta também que as polícias brasileiras ainda não estão preparadas para assegurar os direitos à liberdade de expressão e à manifestação pacífica, e que a sua lógica militarizada contribui para manter os altos índices de mortes violentas.

Além de jovens pobres do sexo masculino, as principais vítimas são os negros. É o retrato em preto, branco e vermelho do preconceito arraigado na nossa sociedade patriarcal, patrimonialista e elitista, que odeia programas governamentais que beneficiem os pobres, porque acha que para eles não há remédio, quando ela é que parece não ter cura.

A miséria da América Latina, se hoje é menos debitada aos países exploradores, agora está na conta do capital especulativo abutre, que faz um bilionário do dia para a noite à custa da desgraça de milhões de seres humanos, e da insensível elite local, que prefere apostar na demofobia e no preconceito a buscar investir na solução de um problema que acredita cegamente nunca a afetar.

(Texto de 1º de fevereiro de 2016  no Caderno Mercado – versão impressa)