Dilson M. Barreto
Economista
O que assistimos pelo noticiário nos últimos dias a respeito dos crimes monstruosos praticados nos presídios de Manaus e de Roraima, deixa transparecer uma perversa onda de violência que pode se proliferar por todo o país, decorrente de luta sangrenta entre facções criminosas detentoras do comércio das drogas em larga escala e que também se espraia por todo o território nacional. É uma praga que está se enraizando de maneira abrupta em todos os recantos do País e cujo controle, mais burocrático do que eficaz, parece não ter qualquer eficácia perante o poder dos agentes do mau. O ocorrido evidencia que estamos vivenciando tempos de barbárie como nos primórdios da civilização ou na Idade Média, onde tais tipos de mortes eram considerados naturais desde quando representavam a luta entre grupos pela própria sobrevivência nos espaços urbanos conquistados. Agora, ao contrário, as mortes talvez até com maior nível de crueldade, representam a luta pela garantia dos espaços de distribuição de comercialização da droga. Fico a perguntar-me: dado a este estado de coisas que acontece nas ruas, nas favelas e agora com maior grau de perversão nas penitenciárias, será que realmente atingimos um alto grau de civilização?
O pior disso tudo é que existe uma conivência generalizada por parte das autoridades carcerárias que, corrompidas e muitas vezes elas mesmas fazendo parte direta ou indiretamente do comércio das drogas, locupletando-se com sua venda entre as mais diversas escalas da sociedade viciadas em seu consumo, fecham os olhos à entrada desde o telefone celular até os mais diferentes e sofisticados tipos de armas, permitindo que atos de selvageria como estes, previamente anunciados, sejam praticados. Tais autoridades parecem lavar consciente e irresponsavelmente as mãos, uma vez que, no seu entender voluntarista, a briga fraticida seria entre eles, facções de bandidos considerados irrecuperáveis e perigosos para a sociedade, numa contenda que se transformou em chacina, porém que nada tinha a ver com a polícia. Muito mais fácil seria a contagem dos corpos assassinados e mutilados. A conivência e a corrupção, o aliciamento quase sempre remunerado, tem permitido transformar as penitenciárias que deveriam ser, pelo menos no papel, centros de ressocialização, em efetivas trincheiras de facções criminosas, esquecendo de que cabe ao Poder Público a responsabilidade pela guarda e segurança de cada detento ali aprisionado, isto porque a área do presídio nada mais é do que um território no qual o Estado responde juridicamente como seu único Agente e proprietário de seus domínios, quer sejam estes bens pertencentes à esfera estadual ou federal. As prisões acontecem em função do poder coercitivo do agente Estado e somente ele tem o poder de recolher ou soltar o presidiário de seus cárceres.
Tudo isto demonstra a crise exposta a olhos nus no sistema prisional, trazendo a público, de maneira alarmante, que o Estado brasileiro, além de falido em todos os sentidos, está gravemente doente em sua ossatura moral e institucional, não lhe sendo permitido enxergar até onde vai o descaso e o perigo que a cada dia está sendo submetido a sociedade que passa também a ser conivente com o crime, rezando na cartilha simplista e burguesa de que “bandido bom é bandido morto”, não percebendo ela própria que os bandidos surgem e se aperfeiçoam no mundo do crime por conta e graça da própria sociedade que exclui, marginaliza e mesmo banaliza e despreza o pobre, o desvalido, o excluído da proteção social do Estado, expulsando-o dos centros urbanizados e forçando-o a viver e conviver em assentamentos precários e insalubres com mulher e filhos, negando-lhe em muitos casos um emprego decente. E quando este inicia sua carreira nos pequenos crimes é de imediato segregado em prisões superlotadas, submetidos a tratamentos vis, ingressando assim na escola superior do crime sob os auspícios de professores já formados no próprio ambiente de maus tratos e violências a que foram anteriormente submetidos. A socialização que conseguem obter por força da vivência prisional passa a estar relacionada com o próprio ambiente criminoso, submundo este que aprendeu a conviver na prisão e que, quando em liberdade, passa a colocar em prática tais ensinamentos. E a cada novo reingresso na cadeia, por mais banais que sejam suas infrações, mais habilitado vai se tornando não apenas para locomover-se no mundo das drogas, bem assim a especializar-se com armas de diversos tipos, aprendendo e acostumando-se em também matar com a mesma simplicidade e sangue frio que antes furtava uma carteira ou um celular.
A cada tragédia desse tipo que desponta nas prisões do país, o Governo, desde priscas eras, de forma demagógica, anuncia, como agora nesse estado de extrema gravidade, planos mirabolantes e ajudas financeiras grandiosas aos Estados que, passado o clima emocional, pois o brasileiro parece ter memória curta, nada acontece, quando muito ficando registrado no papel. Essa negligência do Poder Público deixa transparecer ser algo intencional uma vez que cuidar de prisioneiro não dá Ibope. Daí os presídios superlotados, e seus ocupantes submetidos a condições sub-humanas e degradantes, sempre tendo em sua visão rasteira de que ali está a escória da humanidade. A violência extrema que agora aconteceu, nada mais é do que uma resposta, perversa neste caso, à falta atenção, respeito e de tratamento humanitário a quem está submetido, pelos rigores da lei, ao isolamento do mundo lá fora.
Não é só construir novos presídios ou isolar as diversas facções criminosas que solucionará o problema da violência. É evidente que muitos presos, pelo grau de violência que foram submetidos ao longo de suas vidas, seja na família, na escola, nas ruas, ou através da ação arbitrária dos próprios Agentes do Estado, não têm mais recuperação. Entretanto esta não deve ser uma desculpa para que os mesmos sejam tratados como animais. Somente o fato de reduzir a superlotação, permitindo melhores condições de habitabilidade aos presidiários, separando-os segundo o grau de periculosidade, irá possibilitar uma melhor convivência presidiária e a possível recuperação dos menos perigosos e sua inserção controlada na sociedade. Cabe, entretanto, à sociedade enxergar, para o seu próprio bem, a importância de sua aceitação, não os transformando em futuros revoltosos e potenciais criminosos pela marginalização que forem submetidos. A doença do Estado brasileiro cujas chagas foram agora expostas, é tão somente reflexo da inércia de governantes insensíveis à realidade social brasileira que resistem em enxergar até onde paira os limites da violência e sua capacidade de reverter tais processos. Se é direito de todo o cidadão comum ter trabalho, renda e moradia condignas, também é direito do presidiário ter acomodações dignas, proteção e tratamento humanitário enquanto estiver no cárcere. O Estado é responsável não apenas pela vida do cidadão em sua plena liberdade, como também, e de modo especial, enquanto o mesmo estiver sob sua tutela direta num presídio, qualquer que seja a Unidade Federativa em que esteja localizado. Não dá mais para transferir para o próximo governante um problema de tão complexa gravidade. Sua postergação como até então vinha acontecendo, apenas levará a sociedade a sofrer sérias consequências nesta guerra de fim de mundo.