A Petrobras transcende governos, é assunto de Estado


Guilherme Estrella
Diretor de Exploração e Produção da Petrobras e integrou as equipes que fizeram as grandes descobertas no Iraque e no pré-sal, em 2007, no governo Lula – Carta Capital

A gestão de uma empresa de energia é assunto de Estado. Petróleo e gás natural não são simples “commodities”. São insumos absolutamente estratégicos para qualquer país que se projete soberano ao longo deste século, quando continuarão a representar, junto ao carvão, importantes fontes de energia.

País que importa energia não é país soberano. Se for uma nação política e militarmente poderosa, não terá qualquer limite em aplicar toda sua influência política para assegurar o suprimento externo e, se isto não for suficiente, lançará mão de suas forças armadas para atingir esse objetivo nacional.

A história do século passado exibe, de forma clamorosa, essa inquestionável realidade. Surpreende-me profundamente que quadros importantes da nossa academia não a aceitem e, pior, transmitam aos alunos uma visão puramente economicista e muito distante das evidências.

O Brasil é conhecido como um país de “industrialização tardia”, classificação indiscutível. Qual a causa desta situação, que nos condenou, até agora, à acachapante posição de “terceiro mundo”, como se dizia?

Como todos sabemos, a primeira e a segunda revoluções Industriais, na Europa, no século XVIII e nos Estados Unidos, no final do século XX, decorreram, entre outros fatores, da oferta abundante de energia, de carvão mineral no processo europeu e de petróleo e eletricidade no caso norte-americano. Com todas as suas consequências econômicas, políticas, sociais, científicas e tecnológicas, estas decisivas a longo prazo.

Nos dois momentos, nasceram e se desenvolveram enormemente a tecnologia e a engenharia industriais. Outro efeito muito importante foi a necessidade imperiosa das universidades se adaptarem à nova e intensa demanda de profissionais de engenharia, em diversas especialidades.

Esses fatores determinaram o surgimento e a construção das grandes e hegemônicas economias do mundo ocidental, Estados Unidos e Europa, com supremacia do primeiro país após a Segunda Guerra.

E no Brasil, o que se passou?

Não possuímos carvão mineral siderúrgico, apenas reservas modestas de carvão-vapor de baixo conteúdo energético. Atravessamos o século XIX num estágio medieval de atividades produtivas, restritas ao setor agrícola. Nas primeiras décadas, até por proibição de Lisboa, nada fabricávamos. A situação perdurou até o final do século, após a independência, com energia proveniente da lenha e do carvão vegetal, da roda-d’água, da tração animal e do braço escravo.

Não houve qualquer iniciativa de exploração e produção de petróleo e gás natural no País. A consequência central dessa realidade foi a inexistência de desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil.

Os primeiros cursos de engenharia civil e de minas só surgem no terceiro quartil do século XIX. Apenas no final desse período ocorre o emprego da eletricidade na iluminação, no transporte urbano e na produção industrial. Nesse momento, havia intenso crescimento na Europa e nos Estados Unidos, cujas empresas, já muito avançadas em tecnologia e engenharia, instalaram-se no Brasil para explorar nosso potencial hidroelétrico e distribuir eletricidade.

Surgiram as primeiras indústrias, de tecidos e de calçados, principalmente. A totalidade dos equipamentos empregados na eletrificação pública e privada, no transporte urbano por bondes e nas outras aplicações da eletricidade era importada, com engenharia e tecnologia estrangeira, como foi o caso, aliás, do sistema ferroviário inteiro, com locomotivas a vapor, vagões e trilhos. Tudo vindo de fora.

Esta situação perdura até 1946, quando entra em operação a usina da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. O projeto industrial e toda a tecnologia de produção foram importados. Até então, o Brasil produzia de forma rudimentar ferro gusa e lingotes de aço. Trilhos e chapas de aço para ferrovias, estaleiros, montadoras e construtoras vinham do exterior.

Energia suficiente para alavancar o início da industrialização só esteve disponível a partir da construção de grandes hidrelétricas para aproveitar o imenso potencial hídrico brasileiro, o que se materializou nas décadas de 1970 e 1980. Esse período é considerado como o início do processo de industrialização brasileiro classificado como “supertardio”, caracterizado por se alicerçar em bases tecnológicas e de engenharia estrangeiras, quase acéfalo sob o ponto de vista de efetivo controle e autonomia de decisão por parte da sociedade brasileira.

Acrescenta-se pesadamente a essa fragilidade política e estratégica o fato de ainda sermos importadores de petróleo e gás natural, recursos indispensáveis ao desenvolvimento de um país territorialmente imenso como é o Brasil.

Nossa soberania era, portanto, capenga. Inclusive porque a hidroeletricidade não é uma fonte de energia 100% confiável, como sabemos. Está sujeita, literalmente, a “chuvas e trovoadas”. E um processo robusto de industrialização de um país das dimensões e com a expressiva população que temos não se sustenta com uma dinâmica claudicante no que respeita à disponibilidade de energia, que nos deixaria permanentemente frágeis e dependentes de supridores externos.

Eis que o pré-sal, a maior província petrolífera do mundo dos últimos 50 anos, é encontrado pela Petrobras, em território brasileiro, em frente à mais importante região industrial do nosso País.

Enfim o Brasil, 250 depois da Primeira Revolução Industrial, dispõe de suprimento energético abundante para construir, com autonomia, um verdadeiro Plano Estratégico Brasileiro, com um processo de industrialização inteiramente suportado na dimensão energética.

Entretanto, essa autonomia não representará soberania se não estiver baseada, concretamente alicerçada, em conhecimento, tecnologia e engenharia de projetos, construção, implantação, operação (com segurança máxima) e manutenção. Todo esse conjunto de condições devidamente dominado por empresas de capital brasileiro, com centros de decisão no território nacional.

Tais pressupostos só se materializarão, verdadeiramente, com a obediência ao Marco Regulatório do pré-sal em vigor, devidamente aprovado pelo Congresso Nacional em 2010, e que tem a Petrobras como operadora única sob o regime da partilha de produção, que dá ao governo brasileiro a propriedade do óleo e gás produzido.

Qual a razão central da importância da Petrobras ser operadora única dos consórcios produtores do pré-sal brasileiro?

É porque cabe ao operador a condução de todo o processo de definição de tecnologia e projetos de engenharia que serão aplicados nas atividades operacionais. Esse privilégio do operador lhe confere o poder, também, de definir todo um imenso conjunto de materiais e equipamentos utilizados na construção, implantação, operação e manutenção dos grandes sistemas de produção de óleo e gás.

As prerrogativas descritas propiciam ao governo brasileiro todas as condições de elaborar um projeto nacional de desenvolvimento industrial – científico, tecnológico e de engenharia, com a participação direta da universidade e de centros de pesquisas nacionais e com empresas privadas controladas por capital brasileiro – concretamente autônomo e soberano, inteiramente sustentável ao longo de todo o século XXI.

Adiciona-se a essa extraordinária oportunidade estratégica que o Brasil afinal detém, o rico conteúdo em gás natural do pré-sal. Não só para suprir com abundância a demanda por parte da indústria e do consumo doméstico, mas também pela presença de matéria-prima para fabricação de fertilizantes, outra fragilidade nacional na medida em que o nosso importantíssimo agronegócio, uma das principais colunas de nossa economia, depende de fertilizantes importados.

Além de atender à demanda do uso industrial e doméstico, é fundamental para a geração termoelétrica e para impedir “apagões” no suprimento nacional. É também igualmente rico em insumos básicos para a produção petroquímica, setor importante da economia brasileira.

Não há, portanto, em minha opinião, argumentos operacionais e técnicos que possam presidir qualquer decisão empresarial da Petrobrás quanto ao petróleo e gás do nosso pré-sal – e também de outras áreas importantes no território nacional.

Vender Carcará, ainda mais sob o regime de concessão, não atende aos interesses brasileiros. É assunto estratégico para a soberania nacional, questão de Estado.