Em seu primeiro discurso em um evento internacional, o presidente Jair Bolsonaro “falou o que a plateia de Davos queria ouvir”, mas perdeu a oportunidade de mostrar a líderes, empresários e personalidades públicas do Fórum Econômico Mundial uma agenda concreta, na avaliação de analistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Para cientistas políticos e especialistas em relações internacionais, a fala de Bolsonaro foi superficial e, em alguns momentos, se aproximou da retórica da campanha eleitoral.
“A questão não foi só o que ele falou, mas o que não falou”, diz Leandro Consentino, professor e especialista em relações internacionais do Insper.
Em um painel previsto para durar cerca de 30 minutos, o presidente discursou durante cerca de 6 minutos e respondeu a perguntas de Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial, por 8 minutos.
Há um ano, em janeiro de 2018, o então presidente Michel Temer falou no mesmo evento por cerca de 20 minutos. Em 2014, a fala da então presidente Dilma Rousseff em Davos durou pouco mais de 35 minutos.
Ambos deram um panorama dos indicadores macroeconômicos do Brasil, citaram a importância da responsabilidade fiscal – ou seja, de manter equilibradas as contas públicas – e prometeram medidas de desburocratização para aumentar a produtividade.
Reformas e abertura
A fala de Bolsonaro incluiu as reformas, sem citar a da Previdência (“gozamos de credibilidade para fazer as reformas de que precisamos e que o mundo espera de nós”) e reforçou o caráter liberal da agenda econômica (“trabalharemos pela estabilidade macroeconômica, respeitando os contratos, privatizando e equilibrando as contas públicas”) mas sem falar de medidas específicas.
O discurso passou ainda pela necessidade de o país ser mais aberto (“o Brasil ainda é uma economia relativamente fechada ao comércio internacional, e mudar essa condição é um dos maiores compromissos deste governo”) e defendeu a preservação do meio ambiente (“nossa missão agora é avançar na compatibilização entre a preservação do meio ambiente e da biodiversidade com o necessário desenvolvimento econômico, lembrando que são interdependentes e indissociáveis”).
No entanto, para Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o presidente deveria ter dedicado mais tempo a temas com maior apelo ao público de Davos, que concentra a “elite da economia global”. Ele cita a reforma da Previdência e a questão do déficit público, que estão entre as maiores interrogações dos investidores estrangeiros em relação ao país.
“Ele poderia pelo menos apresentar algumas propostas iniciais, dizer se os militares vão estar ou não incluídos na reforma da Previdência. Na entrevista, ele se esquivou dessas perguntas”, pondera o especialista, referindo-se à questão colocada por Klaus Schwab durante o painel, sobre os “passos concretos” que Bolsonaro planejava tomar “nos próximos meses para dar início ao processo de transformação do Brasil”.
“Era o grande momento para apresentar uma agenda prática de reformas”, acrescenta Santoro. “Quando fala que vai promever abertura comercial, isso é o que as pessoas querem ouvir, mas faltou dar exemplos. Você vai abrir a economia brasileira? Com vai fazer isso? Quanto vai reduzir das tarifas? Está tudo vago, mas chegou o momento que as pessoas querem ouvir propostas concretas.”
Consentino, do Insper, lembra que o tema da Previdência chegou a ser aventado como parte central do discurso, conforme foi noticiado pela imprensa nos últimos dias, mas foi descartado.
O filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, que faz parte da comitiva presidencial, afirmou na noite de segunda-feira que a reforma das aposentadorias não seria abordada, pois atenderia “muito mais ao público brasileiro do que ao daqui”.
“Mas isso era, na verdade, o que mais interessava a quem estava lá”, diz Consentino.
O cientista político e professor do Insper Fernando Schüler discorda. Para ele, o discurso cumpriu seu papel, apresentou a visão de mundo de Bolsonaro e falou “o que o público queria escutar”, ao abordar tópicos como privatizações, segurança jurídica e combate à corrupção.
“Não é o caso em Davos de tratar exaustivamente de assuntos internos do Brasil. É como as grandes empresas fazem. Não estão lá para prestar contas, assumir compromissos. No exterior se dá diretrizes, se fala de estabilização da economia.”
Schüler diz que o evento oferece outros momentos – reuniões com ministros, por exemplo -, onde as propostas podem ser detalhadas, o que não caberia à fala do presidente.
Discurso de campanha
Especialistas avaliam ainda que o discurso de Bolsonaro se aproximou da retórica de campanha em diversos pontos.
“Ele deu sinais claros de que ainda não desceu do palanque”, afirma Consentino.
O professor cita como exemplo o trecho em que o presidente pontua que “os setores que nos criticam têm, na verdade, muito o que aprender conosco”, a menções a “política sem viés ideológico” ou a declaração, dada em resposta a uma pergunta sobre como integrar o Brasil com a América Latina, de que o governo refuta a “América bolivariana que existia no Brasil até pouco tempo”.
Schüler avalia, no entanto, que o fato de Bolsonaro reapresentar os pontos da campanha não diminui a relevância de sua fala. “Ele poderia encomendar um discurso, mas não é o que se espera dele”, diz.
“Existe uma diversidade muito grande de perfis de liderança no plano global. Existem homens muito mais sofisticados – Macron, Trudeau, Obama -, mas Bolsonaro é um líder simples, capitão do Exército que não teve esse preparo intelectual, teria sido artificial fazer um discurso intelectual. Ele mostrou autenticidade”, completou o cientista político.
Já para Santoro, da UERJ, o fato de o presidente ter se atido aos temas de campanha evidencia o fato de que não há propostas concretas para temas que preocupam os investidores estrangeiros.
“O discurso que ele fez foi muito parecido com as falas de campanha no Brasil. Aqui, sempre que o pressionavam sobre algum detalhe específico de economia, dizia que ia perguntar para [o ministro da Economia] Paulo Guedes. Ele não apresentou nada porque a proposta ainda não está pronta e isso vai repercutir mal perante esse público.”
Consentino destaca ainda o fato de o presidente ter repetido parte de seu lema de candidatura: “Deus acima de tudo”.
Ele diz que a escolha foi complicada, já que o público de Davos seria cioso do Estado laico.
“Ali havia pessoas de todos os credos, e a gente já teve uma querela envolvendo países árabes”, ele afirma, fazendo referência ao estremecimento das relações com países do Oriente Médio após a declaração de Bolsonaro que o Brasil mudaria sua embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém.