Indústria da moda é a segunda maior poluidora do mundo. Como reação a essa realidade perversa, surge um segmento que prega mais reuso e menos desperdício
Quantas das roupas que estão no seu armário você usa? Quantas você não usa? Quantas você nunca usou? Por ano, são produzidas em média 80 bilhões de peças de roupas em todo o mundo. Pelo menos 30% dessas peças nunca chegam a ser usadas. O que nós temos a ver com isso? Bom, tudo que é indispensável para produzir uma peça de roupa que vai durar muito ou pouco em nosso guarda-roupas vêm da natureza. O algodão, a água, a borracha. Tudo. Recursos que poderiam ser usados para resolver problemas sociais persistentes, como a fome e a falta de moradia.
Só no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, reduto da produção têxtil da capital paulista, por dia, doze toneladas de roupas são descartadas de forma inapropriada. Elas são queimadas, jogadas em aterros e por aí vai. E a lista de danos para o ecossistema é extensa. A indústria da moda é a que mais polui os mares e oceanos. Já o algodão é o maior consumidor de agrotóxico do mundo. Sim, a calça que você veste tem veneno, e se ela for um jeans, foram usados 5.196 litros de água para produzir essa única peça, segundo dados da Ecoera, consultoria em sustentabilidade nos mercados de moda, beleza e design.
Desde a Revolução Industrial, o sistema de produção, distribuição e consumo de roupas e acessórios utilizado pelo setor tem sido linear. Ou seja, fabrica-se, vai para a vitrine e para as sacolas do consumo, nós usamos (ou nem chegamos a isso) e então essas peças são descartadas. A perversidade desse ciclo já apresentamos aqui: uma indústria que fica atrás apenas da petrolífera no ranking de poluição.
Moda com propósito
Por esses e outros motivos, a indústria da moda tem tentado se reinventar e reciclado formas de existir que sejam sustentáveis e coerentes com os desafios ambientais que o tempo nos impõe. Buscando inverter a lógica dos sistemas lineares de produção de roupas, calçados e acessórios, a economia circular propõe que a produção não seja descartada, mas sim reinserida no processo produtivo após o uso. A iniciativa substitui a dinâmica de consumo de recursos finitos, aumenta a vida útil dos materiais, diminui os resíduos da indústria e promove o desenvolvimento sustentável do setor.
É a partir desse alicerce econômico que a moda circular surge não só como uma possibilidade, mas também como propósito. Segundo André Carvalhal, escritor e especialista em comportamento e sustentabilidade, uma moda com propósito “não quer somente comunicar algo ou criar uma identidade, mas estar a serviço da vida das pessoas como um todo.” Ou seja, uma moda que respeita as pessoas e o meio ambiente e se viabiliza através das gerações.
André é autor do livro Moda Com Propósito – Manifesto Pela Grande Virada (Companhia das Letras, 2016) e tem usado parte do seu tempo para difundir de muitas maneiras informações que chamem atenção para os nossos hábitos e o poder da mudança que cada um é capaz de promover.
“Estamos dentro de uma cultura que omite o fato de que vestimos planta, bicho, petróleo, e esse consumo causa impacto no meio ambiente, causa consequências na nossa vida, como aquecimento global, mudança nos ciclos da chuva e uma série de outras”, alerta o escritor.
As mulheres que puxam movimento
A transformação dos hábitos pessoais e de consumo certamente causa impacto. Não é possível pensar um mundo feito por pessoas sem que a sociedade, como um todo, esteja atenta às suas práticas. Para o jogo virar, no entanto, a indústria da moda é imprescindível, e para isso, quem faz moda precisa estar ciente e engajado com os problemas e soluções do setor.
Uma dessas agentes é María Agustina Comas, fundadora e diretora criativa da Comas, marca que produz peças a partir da técnica de upcycling. A Comas usa peças de roupas que seriam descartadas transformando em algo totalmente novo, e é reconhecida no mercado por ser uma das marcas mais bem sucedidas no estilo. E haja estilo!
Agustina é uruguaia radicada no Brasil. Ela conta que em meados dos anos 2008, alguns poucos anos após se formar em moda e ir trabalhar na indústria com grandes marcas, se deu conta – como é comum com quem está iniciando a carreira na área – do tamanho do desperdício estabelecido como norma na cadeia de produção. Ela então se juntou à uma amiga invadida pela mesma angústia e decidiram usar as sobras para fazer peças novas, ainda sem saber muito o que estavam fazendo.
“A discussão sobre sustentabilidade praticamente não existia. Começamos a pesquisar naquela internet rudimentar da época e entendemos que era algo que estava nascendo e se solidificando para o futuro. Juntamos um grupo de marcas e fizemos uma coleção conjunta. Foi incrível”, conta.
Hoje ela virou uma porta voz de criação circular, com palestras e consultorias. Além de produzir a partir do upcycling para o grande varejo, exemplo disso é a coleção criada para a Renner, Agustina se tornou uma pesquisadora de novas tecnologias para produção em escala de roupas onde nada se perde e tudo se transforma.
“O mercado mudou. Em 2016 só falávamos com os institutos ligados às marcas. Era visto como trabalho social. Hoje conseguimos dialogar com as próprias marcas, e mais, com quem de fato produz. Quem puxa esse boom é a indústria”, comenta.
Para Agustina, as coleções são importantes, mas ela já entendeu que é preciso atuar com os meios de produção para que se desperdice o mínimo possível. Nesse sentido, ela alerta: não há atalhos. “O empresariado precisa estar consciente do seu papel na sociedade, engajado com uma forma nova e melhor de produzir, e usar outras métricas que não são só o lucro, porque desenvolver essas tecnologias requer um tempo longo”, explica. E alerta: no fim, o que arrasta esse movimento é “o desejo e a intenção de pessoas dentro das empresas que batalham por espaço para construir formas conscientes de moda.”
No Rio de Janeiro, Mirella Rodrigues também aposta no upcycling como modelo de negócio que remonta um fazer moda de outros tempos, antes da era do “tudo é descartável”. Ela é proprietária da Think Blue, uma empresa de roupas que podemos chamar de artesanal. Mirella desenha as coleções que deseja, garimpa jeans em bom estado em brechós beneficentes, desmonta completamente essas peças, corta e recria uma peça nova do zero.
Seus avós eram alfaiates, então, para ela, o upcycling é uma forma, assim como a alfaiataria, de oferecer um produto com durabilidade, que irá atravessar tendências e o tempo. “Meus avós foram esmagados pela Revolução Industrial. A calça jeans que eu produzo é infinitamente de melhor qualidade do que uma produzida em escala, mas isso tem um preço”, reconhece a modelista.
Falar em sustentabilidade na moda ainda é falar sobre as dificuldades de acesso a esses produtos. Mal ou bem, descartáveis ou não, a moda produzida em escala oferece preço baixo a uma população, como a brasileira, que é majoritariamente composta por pessoas de baixa renda.
“É preciso, é claro, difundir informação sobre toxicidade da indústria da moda para o consumidor, de forma que ele possa fazer melhores escolhas e transformar esse consumo também em ato político. Mas não culpo as pessoas. Muitas vezes, na maioria das vezes, ela não tem condição de comprar uma peça que remunera os funcionários de forma justa, por exemplo”, explica Mirella.
Moda circular, para quem produz, implica uma revisão de todos os conceitos: da escolha de matérias-primas aos modelos que apresentarão os looks. Dos temas que inspiram as coleções aos símbolos que serão comunicados. Estamos em fase de transição. Para alguns já é uma realidade, para outros não. Quanto mais acelerado esse processo, melhor para todos.
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