Dilson M. Barreto
Economista
A análise procedida por Rui Barbosa nos idos de 1915-1920 sobre a crise moral no Brasil quando do governo do Marechal Hermes da Fonseca, mesmo em proporções infinitamente menores àquela época, pode, entretanto, ser aplicada sem medo de errar, ao nosso País na atualidade. Dizia ele: “A república está doente. Arruinada, senão perdida, na sua moralidade. O que lhe falta, são homens, que a queiram adotar, sem a explorar. O que a mata, é a sua absorção no domínio das vontades, que só a professam para corromper”. As palavras de Rui Barbosa não indicam apenas semelhança, mais do que isso, o fortalecimento da devastidão moral que se alastrou como um câncer em estado avançado de metástase e que por esta razão já tomou conta de todo o aparelho social, propagando-se assim pelo País inteiro. A doença é tão agressiva que a cada dia vai se alastrando alimentado pelos noticiários divulgando novos episódios de corrupção, cada um mais alarmante que o anterior, expondo para a sociedade os efeitos agressivos e mortais da doença.
A corrupção, o patrimonialismo com a não separação entre o é público do que é privado, são vícios desastrosos, herança de tempos imemoriais. Todavia, a cada nova época marcada pelo calendário, essa desintegração moral avança com maior volúpia e, o que é pior, numa forma desavergonhada como se roubar fosse a coisa mais natural do mundo. Não é por falta de leis que a corrupção se alastra em nosso País. Leis existem muitas delas contendo em seu arcabouço penas severas para aqueles que infringirem seus procedimentos. Todavia, trata-se de uma questão ética, de vício moral e de perda de caráter por parte de alguns segmentos políticos e gestores públicos, cuja poder maléfico manifesta-se com grande intensidade, incapaz de ser eliminado por qualquer detergente de elevada eficácia que tente imprimir uma correta limpeza em seus malfeitos. Daí a permanente resistência quanto a seleção e recrutamento de agentes públicos de respeitável honorabilidade e competência profissional. O clientelismo político, a ambição pela preservação do poder, os acordos incestuosos de divisão dos cargos públicos entre amigos, não em função de seus méritos, porém da sua capacidade de subserviência ao circulo político, são razões que maculam a máquina do Estado, desorganiza sua estrutura, afetando, inclusive, nossa respeitabilidade interna e internacional.
Aliado a esses fatos, os políticos resistem em modificar uma legislação eleitoral eivada de vícios, permitindo a proliferação de pequenos partidos de aluguel que, compactuando com o poder, estão sempre com as mãos estendidas para receber o pouco que lhes cabe no rateio do tesouro do rei. Ninguém mais respeita a Constituição. Até mesmo o Orçamento Público, peça relevante que disciplina os gastos do governo, e que deveria ser aprovado até o final do exercício anterior para ser executado em sua plenitude no ano seguinte objetivando preservar o princípio da anterioridade, tem costumeiramente sido aprovado no ano da sua vigência, quase três meses depois, sem qualquer motivo convincente, a não ser a possibilidade da negociata das emendas politicas. Não existe outra justificativa. Toda essa estranheza causa frustação e desesperança quanto à firmeza de caráter dos políticos. Justamente fruto de decepções como estas é que a população deixa de enxergar no horizonte lideranças políticas capazes de conduzir o País por novos e benfazejos caminhos em termos de seriedade e ética, e que dignifique e estimule seu permanente apoio. Mesmo saindo às ruas como está acontecendo agora, clamando por moralidade pública e por mudanças, não são ouvidas por quem de direito, ou estes fingem não entender suas mensagens. Justamente por não haver esse entendimento, amplia-se o fosso entre povo e governo, e aumenta a descrença nas ações dos políticos. Em consequência, as ruas enchem-se ainda mais de gente!
Essa crise por que passa o Brasil e que ameaça perpetuar-se mesmo com todas as lavagens a jato que estejam sendo realizadas, fica patenteada no cinismo e hipocrisia dos envolvidos ao negarem peremptoriamente inocência ou simplesmente aceitarem o “sacrifício” de serem condenados a quatro os cinco anos, desde quando o seu silencio não prejudique os grupos políticos envolvidos e intimamente a ele vinculados. Esta falta de caráter moral é tão grande que, como avalia certo amigo meu, chega-se a pensar que nada parece estar acontecendo, pois ninguém morreu. Entre mortos e feridos todos foram salvos. Efetivamente, fazendo-se uma comparação como os Estados Unidos da América, ou com diversos outros países do continente europeu e asiático, onde a simples suspeita de corrupção leva o gestor a ser demitido do cargo público, pedir demissão ou, em caso extremo, suicidar-se com vergonha da sua própria família e dos amigos, aqui nada disso acontece. Pelo contrário. Como roubam muito e exercem posições de notoriedade, são ovacionados como heróis e os acusadores taxados de golpistas ou de “elite branca” que quer desestabilizar as instituições democráticas.
Novamente, revisitando o velho Rui Barbosa e dele fazendo minhas as suas palavras, o que se tem observado hoje em nosso País é o retrato do que ele afirmava àquela época: “O Brasil moral de hoje está como esses charcos insalubres, como esses lodaçais pestilentos: só se pode atravessar de anda, e correndo, para não enterrar no lodo as pernas até os joelhos”. A corrupção, afirmava o Doutor Ulisses Guimarães, “é o cupim da República”. Realmente, vagarosa e sub-repticiamente vai penetrando nas instituições, destravando a moral dos homens afeitos ao roubo e assim, invadindo vagarosamente as estruturas de poder, transformando-se no elemento mais nocivo da Nação, fazendo então, apodrecido, desabar os alicerces de sua estrutura moral. Daí que as expressões “roubo mais faço” e “se os outros roubam, porque ele também não pode roubar”, representa a pior parte do drama moral que estamos vivendo e que se aprofunda quando esta vem revestida de conteúdo ideológico, tentando alienar o cidadão comum, os mais diretamente beneficiados com os programas sociais, impondo-lhe a versão distorcida e criminosa de que sempre foi assim e que não é de agora que as coisas vão mudar. Se este fenômeno nefasto não é de hoje, tendo suas origens em passado distante, porque então não o corrigir agora? O problema é que o dinheiro quando esquenta as mãos dos corruptos, ele não quer mais despregar-se e seu “cheiro”, da mesma forma que um viciado em drogas, lhe permite fazer também uma “viagem” inebriante que passa a dominar sua mente e encher o seu bolso. É difícil largar o vício.
E encerro este artigo novamente valendo-me da sabedoria de Rui Barbosa ao afirmar que “Todas as crises, portanto, que pelo Brasil estão passando, e que dia a dia sentimos crescer aceleradamente, a crise politica, a crise econômica, a crise financeira, não vêm a ser mais do que sintomas, exteriorizações parciais, manifestações reveladoras de um estado mais profundo, uma suprema crise: a crise moral” (grifo meu). Daí que, pelas próprias palavras do notório homem público do passado, tem também validade atual sua profecia a respeito dos efeitos desta crise moral que resiste em ser eliminada causando desestímulo a um viver com integridade: “de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra e ter vergonha de ser honesto”. Somente a voz e a força das ruas poderão mudar esse panorama. Mesmo assim é preciso que ela seja ouvida e respeitada!
(Publicado no Caderno Mercado do Jornal da Cidade em 12/13 de abril de 2015)